Mulheres, Hobbies e a Permissão ao Ócio: um olhar psicanalítico e sociocultural
- psizuleicavicente
- 3 de set.
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Atualizado: 5 de set.
Resumo
Este artigo analisa a ausência de hobbies na vida das mulheres contemporâneas, articulando contribuições do marxismo feminista e da psicanálise lacaniana. Argumenta-se que a divisão sexual do trabalho, somada à lógica neoliberal da produtividade, sequestra o tempo e a subjetividade das mulheres, dificultando a autorização ao ócio e à criação. A partir de autoras como Silvia Federici e Angela Davis, além das formulações de Engels e Gramsci, discute-se como a exploração histórica do trabalho feminino inviabiliza o cultivo de atividades não produtivas. Por sua vez, a leitura lacaniana permite compreender que o discurso patriarcal captura o desejo feminino, reforçando a alienação ao Outro. Defende-se que os hobbies, quando desvinculados da lógica da performance, podem constituir práticas de resistência psíquica e política, brechas contra-hegemônicas que reintroduzem o sujeito feminino em uma temporalidade própria, vinculada ao desejo e não à utilidade.
Palavras-chave: mulheres; hobbies; ócio; psicanálise lacaniana; marxismo feminista.
1 - Introdução
A ausência de hobbies na vida das mulheres não pode ser reduzida a uma questão de gosto ou de “falta de interesse”. Trata-se de um fenômeno enraizado em determinações históricas, sociais e psíquicas. Na sociedade neoliberal, o tempo é convertido em capital, e o valor de cada indivíduo é medido por sua produtividade. Nesse cenário, as mulheres ocupam posição central: além do trabalho formal, são convocadas à reprodução social e ao cuidado, em jornadas duplas ou triplas, que expropriam seu tempo e energia.
Nesse contexto, interrogar a escassez de hobbies femininos é interrogar a captura do tempo das mulheres. Por que tantas não se permitem ao ócio, à experimentação criativa ou à dedicação a atividades sem finalidade utilitária? Essa questão envolve, simultaneamente, a materialidade da exploração capitalista e a dimensão psíquica do desejo.
Este artigo desenvolve uma leitura crítica a partir do marxismo feminista — especialmente em Federici (2019), Davis (2016) e Engels (2012) — e da psicanálise lacaniana (LACAN, 1998), articulada ao aporte político de Gramsci (2001) e à crítica da psicanálise formulada por Parker (2010). O objetivo é demonstrar como hobbies podem funcionar não apenas como lazer, mas como práticas subversivas frente à lógica da produtividade, abrindo brechas para a subjetivação e para a emergência do desejo feminino.
1.1 - Mulheres, tempo e divisão sexual do trabalho
O marxismo feminista revela que a ausência de hobbies está diretamente vinculada à forma como o capitalismo organiza e se apropria do tempo das mulheres. Para Federici (2019, p. 35), “a expropriação do trabalho feminino, particularmente no espaço doméstico, foi e continua a ser condição fundamental da acumulação capitalista”. Esse processo implica que o tempo que poderia ser destinado ao lazer é sistematicamente absorvido pelo trabalho de cuidado, invisível e não remunerado, mas indispensável à manutenção do sistema.
Davis (2016, p. 240) acrescenta que a ideologia da domesticidade foi racialmente hierarquizada. Enquanto as mulheres brancas foram confinadas ao espaço privado, as mulheres negras foram compelidas ao trabalho compulsório, servindo tanto às suas famílias quanto às famílias brancas. Essa realidade demonstra que a privação de hobbies não pode ser pensada de maneira homogênea: ela se entrelaça com classe e raça, determinando formas desiguais de acesso ao tempo livre.
Engels (2012, p. 89), por sua vez, lembra que “a primeira opressão de classe coincide com a do sexo feminino pelo masculino”, vinculando o surgimento da família patriarcal ao controle do tempo e da subjetividade das mulheres. Assim, a ausência histórica de lazer e de criação não é mero detalhe, mas parte constitutiva da lógica de reprodução social capitalista e patriarcal.
1.2 - O hobby como resistência psíquica e política
A psicanálise lacaniana permite compreender por que, mesmo quando as condições materiais mínimas são garantidas, muitas mulheres ainda encontram dificuldade em se autorizar ao ócio. Segundo Lacan (1998, p. 828), “o desejo do homem encontra seu sentido no desejo do Outro”. O discurso patriarcal convoca as mulheres a encarnarem essa posição de completude do Outro — seja no cuidado com os filhos, no desempenho profissional ou no cumprimento de ideais de feminilidade. Nessa posição, o desejo próprio tende a ser apagado, dificultando a inscrição subjetiva do direito ao lazer.
O hobby pode, então, ser pensado como um ato de resistência. Ao se dedicar a algo que não atende às demandas do Outro nem à lógica da utilidade, a mulher cria uma brecha de desejo. Parker (2010, p. 57) observa que a psicanálise crítica oferece uma linguagem para questionar a naturalização da produtividade, revelando que o sujeito nunca coincide integralmente com o discurso dominante.
Contudo, a captura neoliberal também se manifesta no campo dos hobbies: exige-se excelência, performance e monetização. Para Gramsci (2001, p. 276), a hegemonia cultural opera ao transformar concepções de mundo em senso comum, de modo que até o lazer é ressignificado como trabalho e mercadoria. Nesse sentido, pintar, bordar, tocar um instrumento ou escrever só parecem válidos se resultarem em lucro, reconhecimento ou “produtividade criativa”.
1.3 - O ócio como prática contra-hegemônica
Frente a essa lógica, o ócio precisa ser reivindicado como prática política. Para Federici (2019, p. 112), “reclamar o tempo para nós mesmas é uma recusa a ser apenas corpos para o trabalho”. Assim, dedicar-se a hobbies pode constituir um gesto contra-hegemônico, na medida em que retira corpo e mente da engrenagem da produção, reinscrevendo-os em uma temporalidade própria.
Do ponto de vista lacaniano, Lacan (1998, p. 834) lembra que “o gozo feminino não se deixa totalizar”. Esse resto inassimilável, que escapa à lógica do capital, é o ponto de emergência do desejo. Ao se permitir a experimentação criativa, sem a exigência da perfeição, a mulher se aproxima desse gozo não capturado, rompendo com a temporalidade linear da produtividade.
O hobby, quando vivido nesse registro, não é distração fútil, mas espaço de subjetivação. Trata-se de autorizar-se à não-excelência, acolher o fracasso, brincar com a própria criatividade. O ócio, longe de ser vazio, torna-se pleno de possibilidades de existência.
Concluindo, a ausência de hobbies na vida das mulheres é sintoma da articulação entre capitalismo, patriarcado e neoliberalismo. O marxismo feminista demonstra como o tempo feminino é sequestrado pela divisão sexual do trabalho e pela reprodução social; a psicanálise lacaniana, por sua vez, evidencia a captura do desejo pelo discurso do Outro. Assim, a dificuldade de se autorizar ao ócio é tanto material quanto psíquica.
Contudo, o cultivo de hobbies pode funcionar como gesto político e clínico. Político, porque interrompe a lógica produtivista e reinscreve o corpo feminino em outra temporalidade, não subordinada ao capital. Clínico, porque permite a emergência do desejo e do gozo não totalizável, abrindo espaço para uma subjetivação menos alienada.
Ao reivindicar o ócio e a criação, as mulheres não apenas se apropriam de si mesmas, mas questionam os fundamentos de um sistema que pretende capturar cada instante da vida. Nesse sentido, dedicar-se a hobbies não é luxo nem frivolidade, mas prática de resistência e liberdade.
Referencial teórico
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Boitempo, 2012.
FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e lutas feministas. São Paulo: Elefante, 2019.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
PARKER, Ian. Psicanálise e política: introdução crítica a Freud e Lacan. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
Autoria: Zuleica Vicente (VICENTE Z C M)



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